UMA CIDADE DE ESPIONAGEM INTERNACIONAL.
LISBOA SEGUNDO HOLLWYOOD
A city of International Intrigue. Lisbon according to Hollywood
Dr. João Mascarenhas Mateus
Investigador
CES - Coimbra
Recibido el 26 de Junio de 2010 Aceptado el 13 de Julio de 2010
Resumen. Com a posição de neutralidade de Portugal na Segunda Guerra Mundial, Lisboa ganhou uma nova imagem - a de cidade de espionagem internacional e de diplomacia mundial. As primeiras produções de Hollywood que usam Lisboa no seu título, apresentam a cidade com uma mistura de clichés tardo-orientalistas, de cosmopolitismo e de atraso próprio dos esterótiopos associados ao mundo ibérico e ibero-americano. É no entanto surpreendente o esforço aplicado na reconstituição de alguns espaços e edifícios da cidade e dos seus arredores. A imagem de cidade misteriosa, com caves de vinho e impregnada de música nostálgica marcará futuras produções cinematográfcas internacionais sobre Lisboa e sobre Portugal.
Palabras clave. Hollywood, Lisboa, Paramount, Republic Pictures, International Intrigue, espionage, architecture, image.
Abstract. With the Portuguese unilateral declaration of neutrality during Second World War, Lisbon got a new image - a city of international intrigue and world diplomacy. The first Hollywood productions using Lisbon on their title, pictured the city with a mixture of late-orientalist "clichés", cosmopolitanism and backwardness typical of the stereotypes associated with the Iberian Peninsula and Ibero-America. Nevertheless, it is rather surprising the effort made by the set to use scale models of some spaces and buildings of the city and its surroundings. The image of a city of mystery, with many dark wine cellars and impregnated with nostalgic music will induce future international movie productions about Lisbon and Portugal.
Keywords. Hollywood, Lisbon, Paramount, Republic Pictures, International Intrigue, espionage, architecture, image.
Antecedentes e contextos. Do Orientalismo à Intriga Internacional.
Ao longo dos séculos XVIII e XIX, Lisboa tal como outras cidades da Península Ibérica, em particular Sevilha e Granada, foi descrita por inúmeros viajantes. No século XVIII, por itinerantes de fortuna que fizeram escala em Lisboa nos seus périplos marítimos ou que por motivos militares ou políticos permaneceram períodos mais ou menos longos em Portugal. No século XIX, devido à sua situação geográfica e por fazer parte do mundo ibérico, o país recebeu visitas de autores românticos anglo-saxões que, à semelhança de Espanha, buscavam sensações próprias de um orientalismo idealizado. São bem conhecidos e estudados os casos de James Cavanah Murphy (1760-1814), de Artur William Beckford (1760-1844), de Lord Byron (1788-1824), somente para citar alguns dos mais conhecidos. A produção literária e iconográfica deste grupo de autores foi publicada, frequentemente, em Londres e Nova Iorque ou Filadélfia em simultâneo ou com edições que diferiam de pouco mais de um ano de um lado e de outro do Atlântico.
Lisboa, passou pois a integrar e a reforçar a imagem de Portugal na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos da América do Norte. Uma imagem que foi evoluindo mas que nunca abandonou os preconceitos de meridionalidade e de atraso tecnológico e cultural. No século XVIII, a cidade foi descrita através dos seus monumentos principais (o Mosteiro dos Jerónimos e a Torre de Belém) mas também pela corrupção dos funcionários governamentais e pela sujidade das ruas. No século XIX, sobretudo na segunda metade, os aspectos negativos sofreram algum abrandamento. Às visões bucólicas do plácido estuário do Tejo, da cidade como manto sobre as colinas e o porto, juntaram-se dois lugares de grande interesse para o viajante amador-orientalista que ao mesmo tempo apreciava o revivalismo gótico: Sintra e o Mosteiro da Batalha. O Castelo dos Mouros, o ecletismo do Palácio da Pena e as salas de gosto mudéjar do Palácio da Vila fizeram de Sintra um alto lugar de “peregrinação” dos primeiros turistas ingleses e americanos. O mesmo aconteceu com o Mosteiro da Batalha, exemplar único e arrojado do período culminante da arquitectura gótica.
Com o estabelecimento de travessias transatlânticas regulares asseguradas por navios a vapor sempre de maior capacidade e velocidade, Portugal começou a ser conhecido pelos turistas americanos sobretudo através de Madeira, já que as ilhas se encontravam nas rotas do cruzeiros do Mediterrâneo. Esta facto irá determinar, como se verá adiante, a imagem de Portugal e em particular de Lisboa, nas primeiras produções de Hollywood que escolhem a capital como cenário como se verá mais adiante.
Com a posição de neutralidade de Portugal durante a Segunda Guerra Mundial, declarada unilateralmente logo em Setembro de 1939, Lisboa adquiriu uma aura de lugar priveligiado de intriga internacional e de diplomacia mundial. Uma fachada de normalidade formal fixada nas imagens da aceitação dos embaixadores especiais no Palácio da Ajuda em 1940, a chegada crescente de refugiados que procuravam desesperadamente encontrar uma passagem marítima para os Estados Unidos da América e Ibero-América foram factores decisivos para a consolidação desta nova opinião internacional que se construiu de Lisboa. Outro elemento importante foi também o estabelecimento de voos regulares entre Port Washington (Long Island) e Lisboa, assegurados por hidroaviões de passageiros (os clippers Boieng-314 da Pan American Airlines) a partir de Junho de 1939. Apesar de utilizados por uma minoria privilegiada de muito ricos, a modernidade, rapidez e sofisticação deste meio transporte ajudou a reforçar a imagem de uma certa modernidade e de cosmopolitismo da cidade. Ponto nevrálgico de rotas marítimas e aéreas, Lisboa reforçou a sua posição no “mapa-mundo norte americano” a partir do momento em que na grande produção Casablanca (1942) de Michael Curtiz, a cidade constitui o destino onde muitos desejavam chegar desesperadamente.
O presente texto analisa duas obras cinematográficas. Um anterior a Casablanca e outra posterior, ambas realizadas durante o conflito mundial. A primeira intitulada One Night in Lisbon (1941) foi dirigida por Edward H. Griffith para a Paramount Pictures. A segunda, Storm over Lisbon (1944), de George Sherman para a Republic Pictures. Ambos os filmes resultam de uma mistura de ideias preconcebidas sobre Lisboa e sobre Portugal e de uma tentativa de reconstituição de edifícios, ambientes e paisagens que realmente existiram(1).
One night in Lisbon. Adaptações de circunstância.
Para compreender a imagem de Lisboa neste filme é importante analisar o contexto temporal, político e de produção que presidiu à sua realização. Deve ser assim recordado que os Estados Unidos só entraram na Guerra, em Dezembro de 1941 e que o filme foi estreado em Maio desse ano. É pois num ambiente de tensão e de entrada iminente dos Estados Unidos na Guerra em auxílio da Grã-Bretanha - sua aliada de sangue e tão flagelada pelos raides aéreos germânicos - que o filme é produzido.
O guião de One Night in Lisbon é baseado na peça de teatro There’s Always a Juliet de John Van Druten (1901-1957). Antes de ser adaptada cinematograficamente a obra tinha obtido já um grande sucesso no teatro. Estreada em Londres no Apollo Theater em 1931, cruzou rápidamente o Atlântico para ser também apresentada em Nova Iorque em 1932, no Empire Theatre da Broadway. Para a popularidade de ambas versões teatrais contribuiu a eleição de actores de grande aceitação no momento: Edna Best e Herbert Marshall. A trama é estruturada num triângulo amoroso entre a jovem inglesa de alta sociedade Leonora Perrycoste, o seu prometido inglês Peter Walmsley e o americano Dwight Houston.
A adaptação do script cinematográfico por Virginia Van Upp ao contexto bélico e propagandístico do momento foi evidente e por isso a ambientação da peça original de Van Druten acabou por ter pouco a ver com a peça de teatro. Na peça teatral, Leonora Perrycoste encontra Dwight Houston numa festa onde esquece a sua cigarreira. A sua devolução constitui o pretexto para Dwight visitar Leonora no seu chic apartamento de West End. No filme, os dois protagonistas encontram-se num ambiente muito mais próximo do clima que se vivia em Londres durante a primeira parte da II Guerra Mundial, ou seja num abrigo subterrâneo onde procuram refúgio durante um raid aéreo. Dwight deixa de ser um arquitecto alojado no Ritz por três semanas para estudar os edifícios da City para incarnar um piloto americano que acaba de entregar um novo bombardeiro vindo da Califórnia.
A dinâmica da história leva os três protagonistas a Lisboa, onde Leonora, motorista voluntária do ministro da guerra inglês deverá entregar uma mensagem ao embaixador britânico. Peter (que é comandante) e Dwight acabam por a salvar de um rapto prepertado pelos serviços secretos alemães que tentam capturar a mensagem. O texto da missiva é também altamente simbólico:"Of all forms of caution, caution in love is the most fatal", numa alusão indirecta à importância que os EUA deveriam dar à escolha dos seus aliados no caso de entrarem na Guerra. Em linhas gerais o que se mantém na transferência do teatro para o cinema é o amor entre uma inglesa e um americano cosmopolita, as diferenças nas atitudes amorosas entre a púdica inglesa e o desinibido americano, simbolicamente a atracção de aliança entre a Grã-Bretanha e os EUA.
No que se refere aos intérpretes protagonistas, o filme não constitui surpresas. Dwight é interpretado por Fred MacMurray e Leonora por Madeleine Carroll. Fazer de piloto não é nada de novo para MacMurray. Na verdade este actor tinha incarnado anteriormente o mesmo papel várias vezes: em Thirteen hours by air (Mitchell Leisen, 1936) e em Men with the Wings (William A. Wellman, 1938). Nesse mesmo ano de 1941, a imagem do “eterno piloto modelo” continuará a ser cultivada em Dive Bomber, dirigido por Michael Curtiz.
Num anúncio da época para One Night in Lisbon, é feita publicidade aos amantes de Honeymoon in Bali (Bill Willie Burnett, 1935) e de Virginia (de Stonewall Elliott, 1941). “The world’s loveliest blonde (Madeleine Carroll)” é “loveblitzed by the terrific texan (Fred MacMurray)” e a acção desenrola-se a uma velocidade vertiginosa (de “blitz”) entre Londres donde o texano consegue fazer “evadir” a loura, e Lisboa, onde ela acaba por cair numa rede de espionagem.
Madeleine Carroll interpreta em todos os filmes mencionados o papel de uma mulher sofisticada e independente que só é“domesticada” por homens simples, sinceros e terra-a-terra como os que Fred Macmurray interpreta. Havia vários anos que esta actriz era uma referência para a heroína frágil e ao mesmo tempo forte que conseguia sobreviver em situações fílmicas de grande tensão e mistério. É de recordar o seu papel de protagonista em 39 Steps (1935), de Afred Hitchcock.
Por todas as razões indicadas, é possível afirmar que os papéis dos dois actores protagonistas de One night in Lisbon eram totalmente identificáveis pelo público americano da época. Coincidência, ou simplesmente resultado do número limitado de actores que nessa época trabalhavam nos filmes de acção em Hollywood, o actor franco-romeno Marcel Dalio, recepcionista do hotel em One night in Lisbon será o croupier de Casablanca.
“A very unmodern place, all about wine, women doing all the work”
Entendidos os contextos vários em que One Night in Lisbon foi produzida, é possível agora passar à interpretação da imagem de Lisboa nesta obras. As visões da cidade que são oferecidas ao espectador são de dois tipos. Uma primeira consiste no enunciar das ideias pré-concebidas que o guionista pensava serem as que os americanos e ingleses tinham de Lisboa. Um segundo tipo de impressões são outras que se obtêem através da acção que supostamente decorre em Lisboa. Por outras palavras, o guião é estruturado de forma a “corrigir” em parte as imagens construídas que americanos e ingleses tinham sobre Lisboa.
A primeira ideia de Lisboa é colocada na “boca” de Florence, a velha criada de Leonora. Ela representa a inglesa que nunca tinha viajado e que conhecia o mundo através do prisma vicoriano. Quando Leonora pergunta: “_What Portugal is like?”, Florence responde “_ All about making wine and women doing all the work. It must be very beautiful. I heard it is a very unmodern place. Sunshine is a great deal. I should not like that”.
A segunda ideia de Lisboa é dada oferecida através de algumas imagens de documentário e depois com imagens construídas em estúdio. Lisboa é dada a conhecer numa primeira e fugitiva imagem aérea que mostra os embarcadouros do Tejo e a Praça do Rossio. Segue-se uma vista panorâmica de Lisboa que Dwight a Leonora observam antes de entrar no hotel em que ficam hospedados. Reconstruída em estúdio não tem nada que ver com a Lisboa real, mas trasmite uma impressão simultaneamente idílica e quase tropical. Poderia facilmente tentar reproduzir a Ilha da Madeira, com pequenas casas brancas espanhadas por uma colina verdejante. Resultado provável da influência dos travel movies produzidos para os transatlânticos como referido anteriormente.
A referência ao vinho está presente nas cenas “underground” ambientadas em caves repletas de barris. No clube nocturno uma música melancólica que se assemelha a algo parecido com o fado pretende constituir mais uma nota identitária.
Uma rua de Lisboa em One Night in Lisbon, mais parecendo uma ladeira do Funchal.
Em baixo, um misterioso subterrâneo cheio de barricas gigantes.
O filme pretende oferecer obviamente uma imagem políticamente correcta de Portugal e de Lisboa. Praticamente em nenhum momento se chama a atenção para situações de atraso civilizacional, a não ser um carro puxado por um cavalo e outro por uma parelha de bois com a sua canga. Em Lisboa, pode-se passar um romântico fim-de-semana, chegar e partir em avião. Os hóteis são bons (poucos para a quantidade de pessoas que chegam à cidade), os clubes nocturnos ao nível dos melhores da Europa. Nas palavras de Dwight : “Portugal is a country still at peace with people having fun and still laughing. Bright sun and blue sea. Great castles made of tiles looking like jewels”.
Storm over Lisbon. Uma continuação de Casablanca?
A Night in Lisbon acabou por não ser um grande êxito de bilheteira. No entanto, um ano mais tarde estreava-se Casablanca e apesar de Lisboa constituir apenas o destino final do avião libertador de Ingrid Bergman, a cidade volta a ser mencionada numa grande produção de Hollywood e constitui um dos agentes decisivos da acção. Casablanca tinha sido produzida a partir de um cocktail irresistível à base de três ingredientes fundamentais: uma história de amor, a intriga internacional e dois grandes actores protagonistas. Storm over Lisbon, pode ser lido como uma tentativa de “remake” feita dois anos mais tarde, em que a mistura dos dois primeiros ingredientes volta a ser tentada, sem a ajuda de actores tão importantes e por um estúdio com ambições bem diferentes da Warner Bros.
Na verdade, Storm over Lisbon, aparece como uma continuação de Casablanca, porque o espectador é levado finalmente à cidade à qual a maioria dos refugiados de Casablanca desejam chegar. Uma cidade que é de novo um ninho de várias proles de espiões aliados e do Eixo, estabelecidos no entanto de forma menos improvisada. O bar Rick’s de Rick Blaine.(Humphrey Bogart) é substituído pelo casino de Deresco’s de Deresco (Eric von Stroheim), um escroque que vende pelo melhor preço informações de qualquer espécie que interesse a qualquer serviço secreto. Em Casablanca o herói é o dono de um “night club”. Em Lisboa, o casino pertence ao vilão.
O escritório de Deresco está situado no alto de uma torre-prisão que comunica com o casino por um elevador digno de um arranha-céus de Nova Iorque donde são lançados os corpos dos espiões mais incómodos. De novo, conseguir um bilhete de avião desta vez para Nova Iorque, o destino mais ambicionado por qualquer refugiado europeu, é o móbil dos crimes e dos jogos de interesse. Em Casablanca, Victor Lazlo, importante líder da resistência tcheca, procurava obter “letters of transit” para poder voar para Lisboa. Em Storm over Lisbon, a dançarina checoslovaca Maritza (interpretada por Vera Ralston) também faz tudo para conseguir um bilhete para o clipper que parte de Lisboa para Nova Iorque. O circuito de evasão europeu, segundo Hollywood, estava completo.
Na verdade Maritza é um contra-agente enviado para desmascarar as actividades de Deresco. Bill Flanagan (Robert Livingston), um piloto americano e o jornalista John Craig (Richard Arlen), detentor de um microfilme sobre as actividades japonesas em Burma, são salvos por Maritza que se enamora do primeiro, depois de inúmeras aventuras. No final, Bill e John embarcando no clipper para Nova Iorque convidam Maritza para segui-los. Na última cena do filme, Maritza recusa a oferta para permanecer na Europa ao serviço da contraespionagem e desaparece lentamente ao som de uma música melancólica de cavaquinhos, em jeito de fado.
Cartaz de Storm over Lisbon e cena do filme com Eric von Stroheim (Deresco).
Cartaz de Storm over Lisbon e cena do filme com Eric von Stroheim (Deresco).
É criada assim uma visão norte-americana da Europa ocupada constituída por um labirinto de cidades pelas quais têm que passar os felizes eleitos que chegam aos EUA. Cidades onde, apesar de oficialmente neutrais, o perigo nazi é bem presente. Produzido pela Republic Pictures, conhecida sobretudo por westerns e séries B de mistério e aventura, o filme enquadra-se também perfeitamente no catálogo oferecido por este estúdio.Apesar da popularidade crescente nos EUA de Eric von Stroheim como actor depois do seu regresso da Europa, onde sobretudo em França teve interpretações míticas como a de Capitão Rauffenstein no Grande Ilusão de Jean Renoir em 1937, Storm over Lisbon não constituiu um marco da sua carreira. O seu contributo para filmes de Guerra tinha sido iniciado em 1941 em So Ends our Night (John Cromwell, 1941) desempenhando o papel de um oficial da Gestapo. Seguira-se o papel do Marechal Rommel em Five Graves to Cairo (Billy Wilder, 1943) e de um despiedado coronel-médico nazi em The North Star (Lewis Milestone, 1943). Em 1944 contracena também com Vera Ralston e Richard Arden num filme de terror para a Republic Pictures, The Lady and the Monster, dirigido por George Sherman. A patinadora sobre gelo de origem checa era pouco conhecida como actriz, porque na verdade não era claramente essa a sua primeira vocação.
Better than Montecarlo! One of the most exciting views of the world!
À semelhança de One Night in Lisbon, Lisboa só é vista à luz do dia a partir de imagens retiradas de documentários da época que muito rapidamente oferecem algumas instântaneas da cidade. Mais uma vez a Praça do Rossio, um detalhe de calçada à portuguesa e uma vista das grades da Praça Luis de Camões que com o seu desenho semelhante à Cruz de Cristo transmitem subliminarmente a impressão de que os protagonistas chegaram a uma cidade ibérica e católica. Em tudo o que resta do filme, Lisboa é representada sempre à noite, o que terá ajudado certamente a limitar o budget do filme. A acção desenrola-se em cinco lugares distintos da cidade: o Aeroporto Marítimo de Cabo Ruivo, o casino-torre de Deresco, o esconderijo subterrâneo de Craig, uma zona arborizada ao longo do Tejo e um bar típico.
Imagens genéricas da cidade. As poucas do filme obtidas à luz do dia.
Foi talvez para a recriação do primeiro lugar que os cenaristas da republic Pictures trabalharam mais detalhadamente. Na verdade, a ponte-embarcadouro e a fachada fluvial da estação são primorosamente imitadas. Para esta reconstituição terá sido fundamental um documentário de actualidades da série The March of Time produzido em 1943 e hoje disponível no Steven Spielberg Movie and Film Archive (2) destinado, entre outros objectivos, a dar conta da actividade da ligação da Pan American Airways em Lisboa. A imagem abaixo permite apreciar a semelhança entre uma instantânea de Storm over Lisbon e uma instantânea do dito documentário.
O Aeroporto Marítimo de Cabo Ruivo no documentário de The March of Time, 1943.
O Aeroporto Marítimo de Cabo Ruivo em Storm over Lisbon (1944). Repare-se no detalhe da reprodução da inscrição sobre a porta, na imagem superior. Pelo contrário, em baixo,a fachada terrestre é o produto da imaginação dos cenaristas.
A inspiração para a cenografia da torre do Deresco’s terá sido obtida a partir de outro documentário da série The March of Time hoje disponível no arquivo da HBO (3) e provavelmente da interpretação livre a partir de postais ilustrados da Torre de São da Casa O’Neil (ou de Santa Marta) e do farol de Santa Marta em Cascais e mesmo da Torre de Belém. Do alto da torre, Deresco explica ao espião Alexis Vandelyn antes de considerar matá-lo e lançá-lo ao rio Tejo, que dali é possível apreciar “one of the most exciting views of the world”.
Postais ilustrados da Torre de São Sebastião e do Farol de Santa Marta, em Cascais (Carvalho 2000: 61, 63).
Dois aspectos da torre e do casino de Deresco inspirada em várias torres portuguesas.
Por seu lado, a sala do casino propriamente dita e os cenários das coreografias das danças de Maritza não escapam a um gosto orientalizante, reminiscências da visão norte-americana de Portugal do século XIX e ao mesmo tempo da aproximação ao aspecto do Hotel do parque do Estoril da época. No filme, duas americanas de meia idade que chegam ao casino exclamam: “It’s better than Montecarlo. Montecarlo never had a Deresco’s. Such a finesse!”.
Sala de espera do Hotel do Parque do Estoril nos anos 1930 (Carvalho 2000: 245) e foyer do Deresco’s.
Já no que se refere à cave onde Craig guarda o microfilme secreto dentro de uma vela oca, e à semelhança das caves de One Night in Lisbon trata-se de uma visão piranesiana de uma adega cheia de barris gigantescos. Uma imagem quase onírica de homenagem ao vinho sem qualquer particularidade que o identifique como português.
A zona arborizada ao longo do Tejo encontra-se no limite oposto do desejo de reconstituição de alguns lugares de Lisboa. Reconstrução anónima de estúdio e não identificável a nenhum lugar, a não ser que refere a uma zona perto de um espelho de água. Por fim, o bar típico de Lisboa possui unicamente mesas com toalhas aos quadrados e o gerente, mais bem um taberneiro, tem colocado na cabeça um barrete parecido com os gorros típicos dos campinos do Ribatejo.
A todos estes elementos cenográficos é associado um elemento sonoro desconcertante pela sua ausência de relação com Lisboa. Um grupo de três rufias de bigode, lenço ao pescoço e boné, que não são mais do que agentes de segurança locais, passeia-se pelos bares. Tocam sempre, sem cantarem, o mesmo vira do Minho: “Meninas vamos ao vira!”. Uma canção oriunda de uma província bem distante mas que refere as “meninas de Lisboa”.
Imagens consolidadas de Lisboa nas duas produções de Hollywood
Ambos os filmes possuem aspectos comuns e representam diferentes versões de uma mesma ideia preconcebida e estratégicamente útil aos norte-americanos durante a Segunda Guerra Mundial. O aspecto mais evidente é o de Lisboa ser nesse período um falso paraíso neutral onde uma guerra subterrânea de espionagem internacional se desenrola. As autoridades portuguesas são representadas nos dois filmes de formas diferentes que correspondem aos dois contextos bélicos distintos em que os dois filmes foram produzidos, ou seja reflectindo a posição de Portugal às operações dos Aliados em 1941 e em 1944. Em One Night in Lisbon a polícia portuguesa não parece imiscuir-se nas actividades dos vários representantes das nações em conflito. Em Storm over Lisbon, é o “Ministério da Justiça” que colabora abertamente com as actividades de contra-espionagem de Maritza, em favor dos Aliados.
Placa da porta do gabinete do Ministério da Justiça onde Maritza dá a conhecer às autoridades portuguesas as actividades de Deresco. Em baixo, vista do Tejo a partir da torre de Deresco.
Lisboa é também um porto de chegada e de partida , superlotada de refugiados, onde os hóteis estão cheios e praticam preços exorbitantes. Aparentemente é uma cidade deslumbrante do ponto de vista paisagístico e encontra-se estratégicamente situada. Dispõe de um estuário onde amaram os clippers que fazem a ligação aérea com Nova Iorque. No Aeroporto Marítimo de Cabo Ruivo, os clippers parecem fazê-lo quase com a mesma frequência que numa estação de autocarros.
Sobre a actividade dos navios de passageiros que realmente transportavam a grande maioria de refugiados para a América, pouco é mencionado. Uma visão que falsamente transforma e generaliza a realidade de uma elite rica e a reduz a algo comum, abordável pela maioria das pessoas. Uma capacidade que o Cinema desde cedo colocou em prática ao serviço da distinção de grupos sociais.
Outro esterótipo comum às duas produções é o de representar Lisboa como cidade de vinho. Para além de ser bebido nos bares, o vinho armazenado em enormes e múltiples barricas e tonéis constitui o cenário das cenas obscuras de perseguições e dos esconderijos. Um aspecto que possivelmente teria o seu efeito no inconsciente de muitos norte-americanos que acabavam de sair, havia uma década, do período da Lei Seca. Durante esse período de proibição os cruzeiros trasatlânticos sob bandeira que não fosse norte-americana eram particularmente requisitados como forma de beber sem restrições, pelo menos por alguns dias. A Madeira, como já referido era um “port of call” frequente desses cruzeiros e os vinho da Madeira e do Porto eram plenamente exportados para os Estados Unidos. Não parece pois estranho que Lisboa fosse imaginada como uma cidade em que o as barricas de vinho eram tão comuns como as pedras das suas calçadas.
Em ambos os elencos de actores não aparece um único actor português. Em One Night in Lisbon só o taxista pronuncia um “Sim senhor”? em verdadeiro português. Nem a cantora de fado é portuguesa, sendo interpretada por Antoinette Valdez. No entanto, a ideia de uma canção melancólica que se chamaria fado parece estar presente em abos filmes.
Se comparadas com produções britânicas contemporâneas, como por exemplo Lady from Lisbon (Leslie Hiscotte, 1942), um filme britânico de espionagem, é possível constatar a intenção norte-americana de atingir um determinado nível de reconstituição e “veracidade” dos lugares. Algo que, curiosamente, não é demonstrado no filme britânico. Nele, a cidade é representada como um grande cais para barcos construído contra um morro sem árvores e a acção é passada num hotel com o nome espanhol “Mirabella”.
Pelo contrário, nas duas películas estado-unidenses analisadas, para além de algumas imagens realmente obtidas em Lisboa e retiradas de documentários de actualidades da época e de propaganda turística, assiste-se ao desejo de reconstituição de determinados lugares da cidade.
Por fim, ambas produções reflectem o esforço propagandístico dos Estados Unidos da América destinado a consolidar a imagem de aliança indissolúvel com a Grã-Bretanha. Em One Night in Lisbon, ainda os Estados Unidos não tinham entrado na Guerra, as mensagens são de solidariedade com os sofrimentos causados com os bombardeamentos de Londres e de ajuda pronta dos Estados Unidos. O protagonista americano ajuda apenas a protagonista inglesa a resistir aos alemães. Em Storm over Lisbon, a posição dos Estados Unidos é já activamente demonstrada pelo protagonista que combate abertamente os alemães.
As duas obras cinematográficas analisadas constituem uma construção norte-americana que apesar de circunstancial e circunscrita à Segunda Guerra Mundial terá uma influência considerável em produções posteriores. A imagem de Lisboa como capital de espionagem e de mistério vai reflectir-se na própria imagem cinematográfica de Portugal em períodos posteriores. Mas esse assunto é tema para um outro texto de investigação.
Notas
(1) Outras produções de Hollywood anteriores às discutidas no presente texto só muito indirectamente trataram Lisboa como um lugar com uma identidade própria. Por exemplo, o filme The Last Flight (William Dieterle, 1931) é também em parte ambientado em Lisboa, e usa essencialmente o esterótipo das corridas de touros, possível de encontrar noutros locais em Espanha.
(2) March of Time -- outtakes -- Lisbon harbor, March-April 1943, Story RG-60.1157, Tape 49, National Archives and Records Administration (NARA), 200 MTT 994 C, duração 9:57 minutos.
(3) March of Time 1943: Portugal Lifestyle, TQ49310021_031, Time Inc's newsreel
series, "The March of Time®".
Bibliografia
BRAGA Ricardo, “O Jornal Português (1938-1951): veículo de propaganda cinematográfica de um país nas margens da guerra”, Prisma, Universidade do Porto, Centro de Estudos em Tecnologias, Artes e Ciências da Comunicação.
CARVALHO António et alii, O passado nunca passa: Catálogo da Colecção José Santos Fernandes, Câmara Municipal de Cascais, Cascais, 2000.
PIMENTEL Irene Fulsner, “Lisboa, capital europeia da espionagem” en PAÇO António Simões do (coord.), Os anos de Salazar/ O que se contava e o que se ocultava durante o Estado Novo, vol. 6.
VAN DRUTEN John, There’s always Juliet, a comedy in three acts, London, V. Gollancz Ltd., 1931 (London, S. French Ltd.; New York, S. French inc., 1932).
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